quarta-feira, 2 de novembro de 2016

A Reconquista


Califado Al-Andalus. Século X.


Havia uma grande insatisfação na Península Ibérica com o tipo de governo desenvolvido pelos muçulmanos, que abusava da arrogância, do poder exacerbado de seus líderes e pelas disputas e lutas internas fratricidas. A maioria dos judeus morava na região de Al-Andaluz, mas progressivamente fugia e buscava refúgio na região norte, onde os cristãos detinham o poder. Até então, havia poucos judeus em territórios cristãos e ocorreu incremento na fuga dos judeus para o norte, entre os séculos X e XI.




No século X começou uma lenta, mas progressiva, perda de territórios mouros para os cristãos. Muitos judeus passaram a colaborar com os cristãos em sua tentativa de reconquistar o território, anteriormente visigodo e perdido para os mouros. O papa Alexandre II aconselhou os bispos a respeitar a vida dos judeus. No início dessa migração judaica, surgiram disposições cristãs no sentido de proteger judeus no Condado de Barcelona. Entre os mouros, surgiu um sentimento de revanche, com inúmeros massacres de judeus colaboracionistas dos cristãos.


A Reconquista de Al-Andalus, em diferentes períodos.


O rei de Castela Alfonso VI iniciou uma política favorável aos judeus o que os levou a cargos administrativos do reino. Na batalha de Sagrajas, os judeus combateram ao lado do rei de Castela. No reino de Aragão existem relatos de judeus que eram contratados para educar membros da família real. Sucessivamente, foram caindo cidades ao norte do território de Al-Andaluz. Os almorávidas, fanáticos e mais radicais, do norte da África, invadiram Al-Andaluz e destruíram o Império Omíada, numa luta fratricida. Em 1085, após longo e penoso cerco, que envolveu a destruição dos campos férteis das proximidades e o surgimento da fome que se alastrou entre os mouros, caiu Toledo, a cidade mais importante até então conquistada. Logo, Alfonso VI estabeleceu aí a capital do reino de Castela. Toledo transformou-se no polo de três culturas e três religiões: a cristã, a muçulmana e a judaica. A partir de 1125 começa a funcionar a chamada Escola de Tradutores, que contava com importantes intelectuais judeus. Eles traduziam obras do árabe para o romance (mistura de hebraico com latim e a língua local) e logo se deu o encontro entre a cultura clássica e o pensamento cristão, quando foi traduzida a obra de Aristóteles. Praticamente, todo o conhecimento humano da época foi conservado e transmitido por sábios judeus.



Rei Alfonso VI, de Castela.


O maior de todos os nomes judeus, do período, foi Moisés Maimônides (Moshe ben Maimon), também conhecido como Rambam. Filósofo, religioso, codificador rabínico e médico, tornou-se uma figura fulgurante no universo da cultura medieval. Nascido em Córdoba, em 1135, foi expulso pelos mouros, após estes terem recapturado (por pouco tempo) a cidade de Córdoba. Após doze anos de peregrinação pelo sul da Península, fugiu, com sua família para Fez, no Marrocos, e, de lá, dirigiu-se a Fostat, então capital do Egito. Em todos os lugares onde viveu exerceu com brilho seus conhecimentos de liderança e administração, granjeando fama internacional. Profundo conhecedor da Torá, codificou os 13 princípios fundamentais do judaísmo. Morreu, em 1204, em Fostat e foi sepultado em Tiberíades, na atual Israel.


Maimônides



Mesmo assim, foi uma época de insegurança para os judeus. Eles eram considerados propriedade do rei e os impostos que pagavam eram revertidos para a coroa. Como a luta contra os mouros se intensificasse, os reis cristãos utilizavam o dinheiro dos judeus para financiar suas campanhas bélicas. No final do século XII, ocorrem saques e matanças em algumas juderias, como as de Toledo e Leão. O IV Concílio de Latrão, sob o comando do papa Inocêncio III, impõe aos judeus o uso de distintivos especiais na roupa para que pudessem ser distinguidos dos cristãos, mas o rei Fernando III, necessitado do dinheiro dos judeus, conseguiu tornar sem efeito tal medida.


IV Concílio de Latrão. O papa Inocêncio III preside a última sessão do 
IV Concílio de Latrão em 30 de novembro de 1215, quando
foram reforçadas as restrições aos judeus.


Casa de Maimonides, em Fez, Marrocos.


Os reis do século XIII, em geral, foram favoráveis aos judeus, mas a pressão da Igreja, que almejava sua conversão, foi de tal ordem que se estabeleceu, em Aragão, o Tribunal da Inquisição. Após a conquista de Mallorca e Valência, Jaime I concedeu aos judeus benefícios e propriedades, bem como privilégios para que exercessem seus ofícios. Essa relação entre os judeus e os reis podia ser interpretada como uma troca de favores: eles prestavam serviço, mantinham a lealdade e supriam os reis com dinheiro e, recebiam, de volta, proteção e autonomia. Os judeus eram explorados e não podiam reclamar. Mas, os nobres e o populacho se rebelavam e se amotinavam ameaçando e matando judeus. 


Judeu. Vasco Fernandes, primeira metade do século XVI.
Óleo sobre madeira. Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.
Retrato de um judeu pobre, um dos poucos que
sobreviveram ao apagamento da imagem judaica em Portugal.


A Igreja acusava os judeus de deicídio, pela morte de Jesus Cristo, e não se acanhava em empregar todos os meios ao seu alcance para conseguir sua conversão. Foi quando teve lugar os enfrentamentos teológicos de Barcelona entre o converso Pablo Cristiano e o grande filósofo judeu Nahmánides, em 1252, debates que persistiriam cento e cinquenta anos mais tarde em Tortosa. 

O rei Alfonso X, o sábio, rodeou-se de intelectuais judeus, já que falavam e escreviam o árabe, conheciam esta cultura e mentalidade, além de conhecerem bem suas áreas urbanas, conhecimentos estratégicos para o rei. Entretanto, nas Cortes de Valladolid e Sevilha, surgem elementos legislativos discriminatórios para com os judeus. Os empresários e almoxarifes judeus de Alfonso X foram acusados de traição e infidelidade e sua condenação trouxe para os cofres do reino uma fabulosa multa de 12 mil maravedis, a moeda da Península, na época.


Alfonso X, o Sábio.


No século XIII, os diversos reinos cristãos da Península passam por grandes mudanças, o que alterou o aparato governamental e administrativo, que, mais tarde, exerceu grande influência no mundo moderno. Apesar dos judeus terem contribuído para esse progresso, eles viram levantar-se contra si um clima insuportável de ódio, que tinha raízes profundas na Europa ocidental. O Odium Theologicum (argumentação usada pela Igreja Católica para combater o judaísmo, que era visto como concorrente, para cortar os laços que ligavam as duas religiões no início do cristianismo, ódio que gerou o antissemitismo), surgiu com força total e se tornou ameaçador e terrível.
Em 1212 ocorre a sangrenta batalha de Las Navas de Tolosa, onde o futuro da Península tornou-se mais claro. O islamismo enfraquecido, deixava espaços vitais para os cristãos. Isso também foi determinante para o futuro dos judeus.


Batalha de Las Navas de Tolosa. F.P. Van Halen. Século XIX. Óleo sobre tela.
Palácio do Senado, Madrid.


Em 1313, o Sínodo de Zamora, impôs a opinião de setores mais radicais da Igreja, ressuscitando as prescrições do Concílio de Latrão e proibindo os judeus de serem médicos de cristãos. Em 1348 surge a Peste Negra, o que aumentou o ódio antissemita. Os judeus são acusados falsamente de sua propagação. Após uma luta fratricida entre Enrique de Trastámara e seu irmão Pedro I, graves consequências advieram para o reino, principalmente para os judeus sefaradis o que contribuiu para a efervescência como numa panela de pressão. Isso desembocou nas matanças de 1391, em que ocorreu o primeiro genocídio antijudaico.


Peste Negra. Ilustração do século XIV. Doentes recebendo as bênçãos de um clérigo.


Os judeus haviam sido, por séculos, os encarregados de recolher tributos para o tesouro real. Sua proximidade com o rei e os nobres, bem como dos prelados da Igreja, era de tal ordem, que pode ser compreendido o vazio surgido no século seguinte, com sua expulsão da Península. Suas posições eram difíceis de serem mantidas, pois, apesar de serem indispensáveis para a classe alta, eram vistos como exploradores pela classe baixa, o que atraía o seu ódio. Isso foi facilmente aproveitado pelo clero para desencadear perseguições antissemitas. Mesmo com a defesa dos judeus feitas pelos reis, que viam sua importância para a economia estatal (até Fernando de Aragão, o Rei Católico, reconhecia isso, pois também corria em suas veias sangue judeu), não foi possível conter a avalanche de acontecimentos que culminou com sua expulsão da Península. 


Judeus queimados vivos, em decorrência da crença
de que eles transmitiram a Peste Negra.


Com o advento do século XV, a perseguição aos judeus assumiu traços de ferocidade e os reis se tornaram impotentes para detê-la, pois sua popularidade estava em risco. A nobreza foi, progressivamente, se emparelhando economicamente com os judeus, enfraquecendo sua posição.




Abraham Ortelius.
Antuérpia, 1570. 
Considerado o primeiro atlas moderno, fruto das descobertas
lusas e hispânicas dos séculos XV e XVI.


Apesar de tudo, os judeus sefaradis abriram, dentro do judaísmo, caminhos novos em áreas de conhecimento filosófico e místico. Avançaram na interpretação de textos sagrados, entrando também em áreas do conhecimento que se ampliava no período, desde a exegese bíblica do direito até a cartografia náutica, desde a cosmologia até a astrologia, desde a alquimia até a medicina e matemática. Isso, sem dúvida, contribuiu para que a Espanha e Portugal se tornassem as potências marítimas que foram, entre 1450 e 1500.



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